Guilherme ainda era jovem, mal tinha completado 25 anos. Apesar de muito novo, tinha se formado, passado em concurso, casado e até se separado. Depois de dias com uma dor de cabeça forte e as vistas um tanto cansadas, decidiu procurar o médico. Na primeira consulta, tomou remédio e recebeu o pedido de alguns exames. Três dias depois, Guilherme recebeu uma ligação enquanto almoçava. O doutor queria vê-lo o mais rápido possível. Sabia ele que era coisa grave. Pensou num câncer! Voltou para o trabalho e não conseguiu aguentar o fim do expediente, saiu mais cedo direto para o consultório.
Ele tinha uma doença grave, pouco conhecida, degenerativa e ainda sem cura. O seu corpo produzia alguma substância em excesso. Dores de cabeça, visão cansada, perda da visão em um futuro próximo, ataques epilépticos e outras reações fariam parte do futuro de Guilherme. O médico explicou que algumas medicações diminuem a dor ou o risco de algumas dessas reações, mas o sistema imunológico iria com o tempo ficar cada vez mais frágil. Guilherme que achava que "tempo de vida" era invenção de autores de novela, recebeu um ultimato: dez anos no máximo.
Ele saiu contente. Dez anos é muita coisa! Estava conformado que não teria um filho, talvez tivesse, mas não iria vê-lo crescer. Não iria avançar muito na carreira. Não veria seus sobrinhos chegarem bêbados e darem o mesmo trabalho que ele e os irmãos deram. Não teria a chance de ver uma nova Copa do Mundo no seu país. Só que dava pra ser feliz, dava para viver muita coisa, enquanto a saúde permitisse.
A mãe dele morreu há cinco anos. Ela era contra remédios e relutava o quanto pudesse ir a um hospital. Acreditava que todo mal era decorrência de um descontrole emocional. Ele nunca acreditou nisso. No dia seguinte à notícia, Guilherme acordou e foi direto a farmácia. Chegou no trabalho e não tinha contado nada a ninguém. Se as pessoas soubessem, aquela calma seria a coisa mais estranha do mundo. Era melhor deixar tudo acontecer. Afinal, em dez anos ele podia morrer atropelado, pensava. No segundo dia, Guilherme acordou estranho. Sonhou a noite inteira com sua mãe. Inquieto, decidiu mudar toda sua vida. Não era religioso, mas acreditava que algo ou alguém tinha colocado aquela doença para que as coisas mudassem. Não tinha lógica ser tudo como antes. Se ele não podia fazer seu organismo produzir menos da substância que em excesso lhe faz mal, decidiu cortar tudo aquilo que julgava ser supérfluo.
Em alguns meses, Guilherme estava bem e só esperando sair a sua aposentadoria por invalidez. Decidiu começar cortar os seus excessos pelo trabalho. Passava seis horas do seu dia com umas dez pessoas. De uns quatro, se considerava amigo. Nada muito próximo. Almoçavam, iam a happy hours, marcavam churrascos, ficavam juntos nas festas da empresa e toda segunda-feira comentavam sobre o final de semana, sem muitos detalhes. Amigos de trabalho: pensou que não faria falta. Aquela não era amizade de verdade, igual a que tem com seus AMIGOS de verdade, com quem já dividiu histórias, bebidas, dinheiro, mulheres, ressacas, brigas... Quando a papelada da aposentadoria saiu, pegou a maioria de surpresa. Levou tudo tão escondido: não queria despedidas. Guilherme não entrou em detalhes, apenas contou que estava indo embora, arrumou suas coisas e saiu. Prometendo, claro, manter contato. Aquelas promessas que ninguém cumpre. Naquele dia, Guilherme morreu para os seus colegas e amigos do trabalho. Morreu sem ouvir que era querido, sem ser perguntado pra que time torcia, sem ser galanteado pela estagiária, sem receber o presente que o cara que dividia baia sempre pensou em dar, sem ser convidado para o batizado do filho da chefe... Foi cedo demais.
Dois anos depois de ser diagnosticado, Guilherme teve a primeira crise epiléptica. Foi socorrido pela irmã que estava em casa. Os anos passados foram tranquilos, apenas algumas dores de cabeça. Nessa crise que ele começou a ver a gravidade e o peso do prazo que lhe foi dado. Ter se livrado do trabalho, do estresse e daquelas amizades superficiais não foi o suficiente. Resolveu, então, fazer um novo limpa em sua vida. Ele se considerava um cara ora com muitos amigos, ora com poucos. Tinha amizades da rua onde cresceu, da escola que estudou a vida toda, alguns da universidade e outros da vida. Tinha amigos até virtuais! Ou melhor, amigos que conheceu pela internet, fez amizade, acabou encontrando em uma ou outra festa, mas que se relacionava basicamente pela rede. Era um círculo grande pra ele! Resolveu mensurar em um cálculo doido aqueles que realmente amava, que realmente era amigo: um do colégio, outro da faculdade e um terceiro da vida. Desses, tinha aquele que gostava mais, o que saía mais e o que mais desabafa. Decidiu se afastar dos demais. Saiu das redes sociais, parou de frequentar os bares e boates badalados, preferia uma cerveja com seus poucos escolhidos. Foi, então, que Guilherme morreu para todos os outros. Morreu para aquela menina que cresceu com ele, que jogou futebol, que beijou na boca, que o chamou pra ser padrinho do casamento... Morreu para o colega da faculdade que foi junto a todos os churrascos, que apresentou junto todos os seminários, com que amanheceu no aeroporto no dia da formatura... Morreu também para o amigo que comentava as novidades tecnológicas, os vídeos mais novos do Youtube.... Morreu sem saber que foi o primeiro beijo da menina, que foi o melhor companheiro da faculdade e que foi o contato que mais conversava no MSN com aquele outro.
Guilherme fazia parte de uma família grande. Cheio de tios e primos. Sua mãe teve três filhos: ele era o do meio. Era apaixonado pela sua irmã mais nova e se desentendeu muito com o irmão mais velho. Seus tios e primos eram bem próximos. As reuniões nos feriados e nos aniversários eram momentos bem agradáveis. Só que Guilherme sempre foi muito tímido. Apesar de saber que era muito querido, nunca se expôs muito. Era engraçado, brincalhão, mas não gostava de mostrar suas conquistas, suas derrotas e essas coisas que todo mundo divide com os mais próximos. Percebeu então que alguma coisa estava errada. Se ele não se sentia à vontade com aqueles que eram do seu sangue, com quem foi criado, não tinha porque manter essas relações. Arrumou suas coisas e decidiu se mudar. Os amigos o visitariam sempre que pudessem, a irmã também. De resto, não queria mais ouvir o choro das primas, as mentiras dos primos, os conselhos dos tios e as lembranças de suas meninices. Guilherme morreu cedo para a sua família. Decidiu se isolar em outro país até o fim dos cinco anos que lhe restavam. Foi sem ouvir o quanto era bom ouvinte, que era o sobrinho favorito daquela tia que tanto gostava, o quanto foi motivo de orgulho para seus pais, que era a diversão dos encontros de família e tanto mais.
No seu aniversário de 35 anos, Guilherme recebeu a irmã, o sobrinho e o melhor amigo (aquele que ele mais gostava) em seu apartamento quarto-sala, no frio daquela metrópole. Os últimos anos foram de limpeza geral. Só que não conseguiu curar-se da doença. As crises aumentaram nos últimos tempos, apesar dele já conseguir prever quando algo iria lhe fazer mal. Havia combinado com uma enfermeira, que lhe visitaria dia sim, dia não. Não queria ficar morto por dias naquele apartamento. Reduziu as pessoas ao seu lado, as roupas no armário, as fotos nos porta-retratos, mas ainda assim, queria ser lembrado por aqueles que mais amou. Aqueles que julgou fazer parte do essencial. Do que ele precisava amar e ter por perto para viver, que suprira todo o resto deixado para trás.
Suas visitas passaram uma semana na cidade. Foram dias de comida boa, papo animado e um clima de despedida. Ele acreditou no prazo que recebeu. Apesar de não se sentir tão diferente do aniversário passado, esse marcava o limite. Guilherme atingira a marca que estabeleceram. No dia da irmã, do sobrinho e do amigo voltarem para o seu país, ele os acompanhou até o aeroporto. Queria ter o controle da última imagem que ficaria na lembrança dos que mais amou. Como num filme, achou bonito um tchau visto pela janela do avião.
Guilherme já não dirigia há alguns anos. Pegou um táxi de volta para casa e, enquanto observava cada floco de neve cair, repensou no que fez desde aquele segundo dia pós diagnóstico, quando resolveu guiar-se por uma filosofia de vida que não era a sua. Pensou naquela mulher que vinha todo o dia tão cheirosa trabalhar e sentava do outro lado da sala, e que sempre ria alto. Relembrou as fofocas que rolavam nas saídas depois do trabalho, principalmente, quando a chefe começou a dar em cima de um estagiário. Relembrou também aquele gordo chato que morava ao lado da casa onde ele viveu os primeiros anos e que, quando cresceu, ficou forte. Eles sempre se encontravam nas festas. De tanto fingir cordialidade, Guilherme agora até sentiu saudades. E como estará aquela prima que tantas dúvidas amorosas tinha? Será que está mais centrada e decidida?
Guilherme não pensou em voltar para seu país. Talvez uma viagem, se estivesse vivo no meio do ano. Não pensou em retomar as amizades, mas talvez fizesse um perfil para adicionar e saber como está a vida de tanta gente que deixou. Ele queria imprimir algumas fotos. Tentaria se alimentar um pouco daquele tempo que viveu sem se preocupar tanto com o barulho do relógio. Ele se perguntava como teria sido se tivesse levado a vida como antes. Se esperasse a morte chegar normalmente, se é que isso é possível. Ou, então, se nunca tivesse ido ao médico. Teria vivido todo esse tempo? Teria vivido mais feliz?
Quando o táxi parou em frente ao prédio, Guilherme notou que tinha esquecido a carteira no sofá. Foi rapidamente até o apartamento, entrou, pegou a carteira e saiu, sem nem fechar a porta da sala. Desceu. Olhou para os dois lados, atravessou a rua e pagou o taxista. Nesse momento, começou a se sentir um pouco mal. Talvez tenha sido a pressa. Ele não tinha mais o pique de antigamente, claro. Forçou-se a ter força e atravessar a rua, mas não conseguiu completar o trajeto. Um motorista desatento, envolvido com o toque do celular, atropelou aquele homem.
Guilherme morreu na ambulância, a caminho do hospital. Morreu com 35 anos, dez depois de ser diagnosticado. Morreu atropelado. Com poucos amigos, apenas os que julgou melhor. Não conseguiu prolongar o prazo dado. Levou muitas lembranças, o peso de difíceis escolhas e a leveza do vazio uma vida sem amores. Prendeu-se ao essencial, supervalorizou o que julgava ser melhor e esqueceu todas as nuances e os pequenos detalhes. Esses que são essenciais! Dessa vez, Guilherme morreu para poucas pessoas. Sua morte já não será tão sentida por tanta gente, que há anos ele escolheu se afastar. E mesmo acreditando ter deixado a melhor lembrança, a imagem mais bonita, para os que mais amava, o Guilherme visto pela sua irmã, o sobrinho e o grande amigo pela janela do avião era a de um homem triste, abatido e que perdeu a batalha pela vida há dez anos. Ele escolheu quantificar a vida, como se tudo fosse uma simples conta de soma e subtração. Tentando zerar, negativou quase quatro mil dias. Pensou tanto em afastar o risco da morte, que Guilherme não percebeu que já estava morto quando deixou de viver cada detalhe.
Leia também: Ela era complicada demais e Sempre atrasada.
O último texto publicado foi: A mulher perfeita.
Lucas, você é muito bom!
ResponderExcluirQue orgulho de ser a atual Proaudi do Brasil junto com você :)
Gostei muito desse texto.
Lucas, é inacreditável que vc tenha apenas 22 anos! Vc é extremamente talentoso e hábil com as palavras. Tem clareza, coesão, coerência, perspicácia, criatividade, ousadia, humor... Enfim, vc é um escritor nato!
ResponderExcluirVou indicar seu blog para meus conhecidos.
Desejo muito sucesso e sorte em suas carreiras!
Luciana (mãe da Ana Clara, ex TCU)
Luciana, faço 22 em Setembro! Hahaha Muito, mas muito, obrigado mesmo pelo comentário. Fico todo bobo com elogios assim. Também desejo sucesso e sorte pra você e pra Ana, muito especial pra mim!
ResponderExcluirE indique mesmo! Quem sabe a fama vem. Hahaha
Continue lendo também. Novamente, muito obrigado!